Friday, December 21, 2007

Brasil de Primeiro Mundo a uma hora de Porto Alegre

http://www2.sinal.org.br/informativos/show_sumula.asp?codigo=49339&tema=&tipo=R&data=&dt_dia=14&dt_mes=10&dt_ano=2007
http://veja.abril.com.br/101007/popup_especial.html

O vale da felicidade

Veja - 8/10/2007

Com base em uma educação rígida e de qualidade, surgiu um Brasil de
Primeiro Mundo a uma hora de Porto Alegre


Marcos Todeschini


Lailson Santos

DA ROÇA À UNIVERSIDADE
A foto mostra quatro gerações da família Krug, que fugiu da pobreza na
Alemanha e, como tantas outras, começou a vida
do zero no sul do país, no fim do século XIX. Aos 88 anos, a maior
frustração do agricultor Avelino (de pé na foto, ao lado de uma das
filhas e da nora dela) é não ter superado o ensino fundamental. "Meu
sonho era chegar à faculdade, mas não deu. Comecei então a batalhar
pelos meus filhos e netos." Trabalhou duro para lhes patrocinar
cadernos e livros -
o que foi fundamental para que alguns deles chegassem à universidade.
Avelino nunca mexeu num computador, mas fez questão de dar aos
bisnetos um laptop, com o qual eles brincam na foto. "A modernidade é
meio esquisita para alguém da minha idade, mas sempre procurei olhar
para a frente"

VEJA TAMBÉM
Nesta reportagem
• Quadro: Um Brasil europeu

A uma hora de carro de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, um punhado
de cidades abriga cerca de 660.000 pessoas que desfrutam e preservam,
geração após geração, um alto padrão de qualidade de vida. É um pedaço
do Brasil onde os índices de pobreza são tão baixos quanto os da
Inglaterra, os analfabetos são tão difíceis de encontrar quanto no
Canadá e vive-se mais tempo e com tanta saúde quanto os idosos de um
país europeu como a Bélgica. O custo de vida ali ainda é baixo, os
serviços públicos funcionam e as pessoas não se sentem inseguras por
morar em casas sem muro. Nesse Brasil não tem fila. Em postos públicos
de saúde, a consulta começa com o médico acionando seu computador para
levantar o histórico do paciente. Com base nele, dá-se o atendimento
de gente como o agricultor João Roque Knost. "Só sei de fila para ser
atendido pelo SUS de ver na televisão", diz Knost. No trânsito, o grau
de civilidade dos motoristas é invejável: apenas 2% deles cometeram
infrações no ano passado. Diz o fiscal de trânsito Roberto Gussi: "Meu
trabalho é um tédio". As crianças enfrentam turnos escolares extensos.
Elas chegam a passar oito horas por dia em sala de aula. As notas
superam em muito a média nacional e se igualam ao desempenho
registrado em países de longa tradição de excelência escolar.

Um novo conjunto de estatísticas ajuda a entender por que essas
cidades destoam da média brasileira em quase tudo (veja quadro).
Nenhuma das cidades desse vale da felicidade tem mais de 500 000
habitantes. Essa vantagem de saída ajuda a explicar a harmonia urbana.
Mas ela não é tudo. Cidades com até metade do número de habitantes em
outras regiões já padecem de terríveis males urbanos. O que
explicaria, então, o fato de as cidades gaúchas dessa região se saírem
melhor do que as demais, mesmo quando são colocadas lado a lado com
municípios brasileiros de mesmo tamanho e até menores? Os observadores
são unânimes em detectar que o maior diferencial desses vinte
municípios é terem atingido os mais altos níveis de educação há muitas
décadas. Em 1920, enquanto a população brasileira se atolava em 70% de
analfabetismo, a taxa do Sul beirava zero. Essa base educacional
desencadeou naquelas cidades um ciclo virtuoso muito semelhante aos
experimentados por países onde a educação esteve na vanguarda do
desenvolvimento. O americano Douglass North ganhou o Prêmio Nobel de
Economia em 1993 justamente por ter percebido o papel das instituições
fortes na criação de riqueza. Diz Douglass North a VEJA: "Sociedades
mais educadas dispõem de instituições mais eficientes e economias mais
vibrantes". De um lado, pessoas com boa escolaridade são mais
propensas a respeitar contratos e o direito à propriedade privada. De
outro, é mais provável que em uma sociedade assim apareça gente
qualificada para ocupar cargos de comando. A educação contribui também
para que o processo de escolha dos governantes seja mais racional.
Como se sabe, pessoas mais educadas são quase sempre mais críticas e
têm mais aguçado o hábito de fiscalizar os governantes. Todos esses
fatores se combinam, em maior ou menor grau, no tecido social do "vale".


Fotos Lailson Santos

SIM, NÓS TEMOS TêNIS NIKE E ALL STAR
Ao perder o emprego depois de dois anos como executivo numa empresa de
calçados, o gaúcho Altamir Breda, 46 anos, não teve medo de apostar
num negócio próprio. Em uma semana, conseguiu emprestadas as máquinas
da tal firma, que havia falido, e recrutou todos os 250
ex-funcionários. Cada um deles recebeu uma cota da nova empresa. Num
ato de ousadia, Altamir decidiu marcar entrevista com o presidente da
All Star, nos Estados Unidos. Prometeu-lhe na ocasião maior
produtividade do que as empresas brasileiras que até então fabricavam
os tênis. Ao final, conseguiu a exclusividade da produção no Brasil.
Tempos depois, viajou para a matriz da Nike e, de novo, saiu como
representante da marca: "Aprendi a não ter vergonha de oferecer
trabalho - se é bom, todo mundo quer"

A ênfase dada ao estudo, a partir da qual os vinte municípios gaúchos
deslancharam, remonta ao princípio do século XIX. Isso mesmo: mais de
um século antes de o Brasil despertar para o problema. Foi quando
desembarcaram no sul do país as primeiras levas de imigrantes alemães,
seguidos por italianos. A parte deles que escapava de disputas
ideológicas - e não da miséria - já tinha nível de instrução elevado,
mas mesmo a parcela mais pobre e menos escolarizada valorizava os
estudos, tal como em seu país de origem. A religião protestante,
predominante entre os alemães, ajuda a explicar o apreço dos
imigrantes pelos livros. Já na Alemanha do século XVII os luteranos
atraíam muita gente para suas escolas. O objetivo era alfabetizar
crianças para que pudessem ler a Bíblia, além de lhes ensinar os
rudimentos da matemática para que não fossem roubadas pelos nobres.
Desse caldo cultural saíram os imigrantes que vieram morar no Brasil.
Por essa razão, priorizavam a construção de escolas, que eles próprios
administravam. O professor aposentado Walter Seger, 80 anos, foi aluno
de um desses colégios comunitários: "Juntavam sessenta, setenta alunos
numa sala. Ninguém queria ficar de fora".

Além da boa escolaridade, algo que certamente conta a favor desse
próspero Brasil é o fato de sua economia ser menos dependente do
estado que a dos demais municípios brasileiros. Um sinal claro disso é
a parcela da população que arranja emprego no serviço público: 30%
menos do que a média nacional. O outro indicador que permite aferir a
influência do estado sobre a economia local é o nível de
empreendedorismo nessas cidades, recentemente quantificado pela
Fundação Getulio Vargas (FGV). A pesquisa revela que em nenhum outro
lugar do país tanta gente se aventura num negócio próprio quanto em
tais municípios gaúchos: é o caso de um de cada quinze trabalhadores
de lá - um número três vezes maior do que no restante do Brasil. É o
setor privado, portanto, o principal motor dessas economias.

ELE FABRICA CARROCERIAS
E O QUE MAIS APARECER
Aos 48 anos, Raul Randon já era o maior fabricante de carrocerias do
país. Foi abatido pela rotina e pelo tédio e começou a lançar-se em
novos negócios. Isso resultou num portfólio que inclui a produção de
queijos e vinhos, o cultivo de maçãs e a criação de vacas - as de
Randon são autênticas holandesas e vieram para o Sul a bordo de dois
aviões de carga que ele fretou. Neto de um agricultor do Vêneto que
chegou ao Brasil com apenas uma enxada e duas peças de roupa, Randon é
um dos vários empresários da região que foram do zero ao topo.
Recentemente, doze deles celebraram os velhos tempos com uma viagem à
Escandinávia em um cruzeiro cinco-estrelas. "A gente se esbarrava nas
filas dos bancos de Porto Alegre com os bolsos cheios de
promissórias", lembra Randon. Esses tempos ficaram para trás

Parte do empreendedorismo local remete aos primórdios da região. Ao
contrário dos colonizadores portugueses, que viviam numa economia
monopolizada pelo estado, os imigrantes que chegaram ao Sul tinham em
seu respectivo país mais chances de tentar a vida por conta própria. E
eles faziam isso. Quando vieram ao Brasil, estavam justamente atraídos
pela possibilidade de comprar terras por bons preços - e passaram aos
filhos essa espécie de DNA para os negócios. Foi o caso dos Randon. Do
avô que veio de Vicenza atracado a uma velha enxada, Raul Randon
herdou o sonho de ser dono de empresa: "Meu avô tinha essa obsessão".
Em 1950, ele apostou as economias numa oficina quando pouquíssima
gente em Caxias do Sul tinha carro. Soou loucura. Aos 78 anos, no
entanto, Randon é hoje dono da maior fábrica de carrocerias do país.
Numa recente viagem à Escandinávia a bordo de um navio cinco-estrelas,
ele e outros onze empresários da região davam o tom dos novos tempos.
"Há quarenta anos estávamos todos juntos numa fila de banco em Porto
Alegre com os bolsos cheios de promissórias", lembrava Randon. "Chegou
a hora de aproveitar."

Essa e outras histórias de quem foi do zero ao topo também servem de
incentivo para mais gente ali investir em novas empresas. Eis o saldo
do empreendedorismo na região, de acordo com o levantamento da FGV:
enquanto 80% das pessoas que abrem negócios no Brasil o fazem por
falta de opção e fracassam em dois anos, nessas vinte cidades do Sul,
ao contrário, os que prosperam são em muito maior número: 80%. Os
especialistas chegaram a conclusões parecidas sobre as razões. Em
suma, tudo se passa num Brasil em que a mão-de-obra é mais
qualificada, trabalha-se mais duro e ainda por cima o sistema
produtivo é organizado por instituições alheias ao estado. Eles estão
se referindo, entre outras, às cooperativas, que agilizam a
distribuição de matérias-primas para a indústria local, e às
associações comerciais, que de fato se prestam ao papel de vender os
produtos da região. Diz o economista Marcelo Neri, da FGV: "Estamos
diante de um raro exemplo no Brasil de sociedade que conseguiu
articular-se de modo eficiente".

O QUE ERA MATO VIROU UM SPA DE LUXO
A carioca Deborah Villas-Bôas, 42 anos, encomendou um estudo em seis
cidades brasileiras para medir a demanda delas por um spa
cinco-estrelas. Concluiu que em Bento Gonçalves o negócio teria mais
chance de dar certo. "As pessoas com dinheiro disseram que adorariam
gastá-lo com artigos de luxo, mas reclamavam que as ofertas eram
limitadas", diz Deborah. Acreditando em suas conclusões, ela investiu
35 milhões de reais para construir o hotel. Antes mesmo de
inaugurá-lo, na semana passada, já havia 300 pessoas dispostas a
visitar o spa e banhar-se em cremes franceses à base de uva. Elas
pagarão até 1 500 reais pela estada. A empresária também sonha atrair
os turistas - e de novo tem dados para acreditar que isso vai
funcionar. "Quem vem fazer negócios na região vai gostar de um momento
de relaxamento"

Uma recente pesquisa indica que também a gestão pública nessas vinte
cidades tem sido mais eficaz do que nas demais. Isso de acordo com um
medidor de qualidade da administração financeira dos municípios,
bastante aplicado por especialistas. Segundo esse critério, o
desempenho de tais cidades é 20% superior ao da média dos 5.500
municípios brasileiros. Significa, entre outras coisas, que elas
gastam menos com pessoal, mantêm a dívida pública em patamares
razoáveis e têm dinheiro em caixa. Com base nisso, o professor Luís
Klering, um dos autores do trabalho, conclui: "O levantamento deixa
claro que há menos corrupção nessas cidades gaúchas. Um desvio maciço
de verbas seria, afinal, incompatível com os números disponíveis".
Dá-se, aí, um novo ciclo virtuoso. Lugares nos quais a corrupção
ocorre em níveis mais moderados são mais atraentes aos investidores
privados, algo também verificado pelo economista Douglass North.
Comprova-se, mais uma vez, no caso do vale gaúcho. Foi, por exemplo,
esse o ambiente que atraiu ao Sul a francesa Doux, empresa que lidera
o setor de alimentos na Europa. Os franceses haviam cogitado
estabelecer-se em outras cinco cidades brasileiras. No fim, preferiram
a região gaúcha: "Escolhemos pelo conjunto de bons indicadores",
resume Aristides Inácio Vogt, presidente da Doux no Brasil.

Por tudo isso, não é exatamente uma surpresa o fato de o PIB local
crescer a um ritmo duas vezes maior que o do restante do país e as
pessoas de lá melhorarem de vida. Os novos números mostram que 60% dos
moradores dessas cidades são de classe média, enquanto no Brasil é o
caso de apenas 20% das pessoas. O que isso quer dizer na prática? Que
os moradores de lá têm mais dinheiro para gastar e que o tanto de
gente que já ascendeu ao topo é suficiente para justificar os
primeiros investimentos de alto luxo da região. É o caso de um spa
inaugurado em Bento Gonçalves na semana passada, cujo diferencial são
os tratamentos com cremes franceses à base de uva. Um banho do tal
produto custa cerca de 1.500 reais. "Já tínhamos vários quartos
reservados antes da inauguração", diz a carioca Deborah Villas-Bôas,
que avaliou ser o interior gaúcho um lugar com grande demanda para um
spa como o dela. Ficaria certamente às moscas na década de 60, quando
apenas um terço das pessoas que moravam na região tinha luz elétrica
em casa e as estradas para Porto Alegre eram de terra batida.

"OS FRANCESES AINDA VÃO SUSPIRAR PELO MEU VINHO"
Em feiras internacionais, o gaúcho Antônio Miolo já ouviu muita gente
criticar seus vinhos. Ele reconhece que ainda está bem atrás dos
melhores do ramo. Por essa razão, levou recentemente a Bento Gonçalves
o francês Michel Rolland, que presta consultoria a 100 outras
vinícolas no mundo. "Vamos ver se com o toque do francês a gente um
dia aparece no ranking dos melhores", diz. Miolo já progrediu muito.
Nos anos 90, fabricava com os irmãos vinho feito com as uvas colhidas
no quintal de casa. Levava os garrafões aos restaurantes a bordo de um
velho Fusca bege. Miolo foi o primeiro da região a produzir vinhos em
grande escala. Hoje detém 30% do mercado nacional e exporta para vinte
países, alguns deles europeus. Ele sonha: "Os franceses ainda vão
suspirar pelo meu vinho"

Foi nos últimos quarenta anos, portanto, que esses vinte municípios
gaúchos se aproximaram do mundo desenvolvido - e se distanciaram da
média brasileira. Eles naturalmente passaram a atrair mais gente, seja
de empresas que vêem nesses municípios mais chances de prosperar, seja
de pessoas vindas de cidades maiores para tentar uma vida diferente
num interior promissor. Os novos migrantes, afinal, fizeram a
população local crescer 10% em cinco anos, algo que chamou a atenção
dos demógrafos. Vêm basicamente das regiões Sul e Sudeste e têm bom
padrão de renda. O típico recém-chegado é como o matemático Amadeu
Leitão, de 36 anos, que trocou Porto Alegre por Carlos Barbosa
acompanhado da mulher, Marta, e da filha, Sofia, de .2 anos. Sonhava
viver no interior - ainda que o cinema mais próximo ficasse na cidade
vizinha e não houvesse um único shopping center no horizonte. O
matemático, no entanto, ganha bem, nunca mais se viu preso em um
engarrafamento e caminha tarde da noite sem medo de ser assaltado. Nem
todas as condições que deram origem ao vale da felicidade gaúcho podem
ser repetidas em outras regiões. Sua tradição cultural, por exemplo, é
irrepetível. Mas há ali um punhado de lições que ajudariam muito a
harmonizar a vida urbana no Brasil caso fossem seguidas.

Com reportagem de Camila Pereira

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